A Revolução das Letras
Num país muito distante, num belo dia as casas se emudeceram, as pessoas tentavam em vão falar, mas nada saia de seus lábios. Os juízes não podiam sentenciar, os médicos não podiam medicar, as rádios só transmitiam melodias, os cantores ficaram mudos, enfim, todos passaram a se comunicar por mímica, transformando o dia a dia numa passarela de gesticulações, contratempos e confusão. A linguagem escrita também, por algum mistério, não ocorria, pois, por mais que as pessoas se esforçassem, as letras se misturavam e o texto se tornava incompreensível. Alarme geral, pois, assim, a economia do país seria arruinada. Estranhamente, todos os sons e comunicações que não eram gerados diretamente por seres humanos continuavam a acontecer, tais como os latidos dos cães, o vento sobre as folhas das árvores, os pneus sobre o asfalto, a enxurrada nos bueiros, os sinos embalados nas igrejas. Já se passavam alguns dias de confusão quando, em meio ao caos, surgiu um comunicado em código Morse simultaneamente em todos meios de comunicações - sabe-se lá de onde vinha-, porém, tinha uma assinatura. O comunicado dizia que todas as letras, por unanimidade, decidiram se rebelar contra a tirania dos humanos, que as utilizavam para mentir, mudar os sentidos das palavras, compor frases de significados dúbios e orações de conteúdos enganosos. Este posicionamento foi apoiado por todas as palavras que, há algum tempo, sentiam-se usurpadas de seus significados. Os sinais ortográficos e de pontuação, em peso, manifestaram seu apoio, até mesmo o enigmático ponto de interrogação. As reticências se abstiveram. Os sons bloquearam suas utilizações nas letras e palavras, enfatizando seu apoio à rebelião. Uma negociação parecia inevitável. Mas com quem, quando, onde e, principalmente, o que as letras desejavam negociar? Passaram algumas horas e chegou outro comunicado com uma pauta de reinvindicações, que assim dizia: “O dicionário, no uso de suas atribuições e com a força das palavras, se propôs como negociador e convidou as letras e demais envolvidos para uma reunião para definir o que fazer.” A reunião foi marcada em uma cartolina branca onde todos puderam se instalar. Como era esperado, um grupo de letras, com o apoio do ponto de exclamação, apresentou uma proposta intitulada “LETRAS!”, um acrônimo de LIBERDADE, ESMERO, TRABALHO, RACIONALIDADE, AÇÃO E SINTONIA. LIBERDADE: em defesa do livre arbítrio das letras poderem se relacionar entre si sem restrições; ESMERO: em defesa da correta pontuação, respeito léxico do idioma e da gramática, bem como da organização sintática das palavras; TRABALHO: em respeito à real força criadora de valor de todos os textos; RACIONALIDADE: a condição que constrói a história da linguagem através dos tempos; AÇÃO: a dinâmica que faz evoluir o sentido e a criação de novas palavras pelo seu uso diário, e, por fim, SINTONIA: a condição que estabelece que o resultado final da comunicação é um trabalho igualitário de todos - de quem ouve e de quem fala. Após alguns a reunião em grupos de trabalho, consoantes e vogais, ditongos e hiatos, após longas intervenções das palavras proparoxítonas, chegaram a um consenso e aprovaram o texto com uma cláusula pétrea. As letras só podiam ser utilizadas para transmitir verdades, e esta condição teria como base a congruência entre o discurso e a prática do que se pretendia comunicar. Com a concordância das palavras, foi aprovada a decisão. No outro dia, a notícia foi comunicada a todos, a greve acabou e a vida começou a reinar novamente. No entanto, algo estranho aconteceu. Algumas pessoas passaram a ficar momentaneamente mudas, outras surdas, outras afônicas, mas a sociedade, de forma geral, notou um acontecimento notável nunca dantes visto pela maioria das pessoas.Com o uso correto das palavras, acordos verbais proliferaram, encontros se tornaram comuns para debates políticos profícuos e as fiscalizações passaram a ser desnecessárias pelos órgãos de estado no convívio social. A vida se tornou um dom seguro e docemente palatável. A liberdade, um tempero de quero mais. E a natureza animal e vegetal foi enaltecida pelo respeito de todos, que passaram a reconhecer a si mesmos como parte indissociável de um todo. Verão de 2022

0 Comentários